Sem

Água abundante, clima ameno e a relação ideal entre campos e florestas mantiveram desde sempre aquela região habitada.
Diferentes povos, tribos e famílias passaram por ali até que, no final do século XVIII, os Araújo fincaram fundo na terra os mourões de suas cercas e porteiras. Tudo, da mata rala no alto da serra, até o lago do outro lado do vale, passou a ser deles. Os papéis afirmavam que era verdade.
Araújo após Araújo os varões, barões e patrões mandaram e desmandaram naquela terra e em todos os que ali moravam ou que por ali passavam. Homens de barba, chapéu e facão, garrucha, botina e mosquetão davam ordens que jamais eram contestadas.
Esposas prendadas e submissas educavam as crianças, cuidavam da comida e cosiam as roupas. Faziam sabão, manteiga e pão. Na alcova, agüentavam silentes. No máximo uma lágrima quando os maridos saíam caçar.
Mas tudo mudou com Alayde. O casamento arranjado, sem amor, ela suportou. Mudar de cidade, de estado, de país, por seu pai, ela agüentou. A revolta quando ouviu a óbvia mentira de que seus baús com livros e seu cravo haviam sido extraviados, com o tempo, passou.
Onde ficava o limite? Onde estava a fronteira entre o respeito e a submissão? Entre os compromissos matrimoniais e a escravidão? Naquela terra de ninguém, na terra dos Araújo, não existia limite. Nem respeito nem compromisso. Longe de tudo e de quem não era Araújo, Alayde decidiu marcar as fronteiras, mapear os limites e estabelecer regras.
O seu Araújo, que não conhecia o não, a princípio achou engraçado. Depois um incômodo. Alguns meses depois, quando mandou o feitor dos escravos matar Alayde, ao voltar de uma pescaria, à noite, caiu em uma emboscada. Foi enforcado pelo feitor e por mais seis escravos. Seu corpo nunca foi encontrado.
Aquela propriedade continuou a ser dos Araújo, mas era administrada com maestria por Alayde. Seus filhos foram diferentes. Araújos melhorados. Educados. As mulheres puderam escolher os maridos e jamais um escravo foi surrado.
O pelourinho foi queimado. Os açoites viraram cinzas e os campos se tornaram os mais verdes da região. Nunca se produziu tanto. Nunca se foi tão feliz naquelas terras.
Assim, quando os bisnetos de Alayde Araújo tiveram só filhas, o sobrenome na escritura mudou. Outras famílias passaram e mandar na terra. E aquilo ele não podia permitir.
Quando, naquela noite de primavera, mais um bando de jovens sem educação, nome ou classe entrou na casa, ele não agüentou mais. Aquela casa era dele. Era de sua família. Era dos Araújo. Era dele. Só dele. Aquela mulher infernal estava morta há dezenas de anos mas aquela ralé espúrea que perdeu seu nome continuava indo até lá. E, ofensa sem perdão, a dormir na sua cama.
Não sabia como, mas queria tirar aquelas pessoas de lá. Queria que eles, e todos os outros, nunca mais voltassem. Afinal ele era um Araújo e saberia passar sua vida, ou sua morte, sozinho. Tentava bater nos intrusos, derruba-los das escadas, jogar suas malas para fora, incendiar suas roupas, puxar seus cabelos, mas nada parecia afeta-los.
Gritou. E chorou. E gritou atá não ter mais voz. Até as marcas da forca no seu pescoço queimarem e as cicatrizes se abrirem e Araújo não ter mais lágrimas. Sentou no átrio que ficava entre os quartos e gemeu. Só sentia uma dor seca, que não saía do coração e não escorria pelo rosto. Só doía.
Ali ele ficou. Como nenhum Araújo ficou antes e como nenhum outro jamais ficaria. De sua garganta, quebrada, dolorida, corroída, só saíam sussurros. Roucos, rascantes, asmáticos e, os quais, para sempre, todos os Não Araújo só teriam a impressão de ouvir.

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Vida de Gordo

Alguma vez na sua vida você já teve que fazer dieta para emagrecer? Não estou falando daqueles três ou quatro dias de regime depois das festas de final de ano para perder um quilinho extra por causa da ceia de Natal. Estou falando em dieta séria, com orientação de médico especializado, sem tomar aqueles remédios que deixam a gente dopado, com pesagens semanais e todo o choro e ranger de dentes que acompanham este tipo de situação por mais de um ano.
Não? Nunca fez? Você é uma daquelas pessoas que come o que passa pela frente e o corpo simplesmente ignora e segue em frente, esperando a próxima refeição? Você tem um metabolismo que encara 200 brigadeiros, uma folha de alface ou um bifinho na chapa da mesma forma? Então conte suas bênçãos. Você faz parte daquele percentual da humanidade que tem um problema a menos. Um grande problema a menos.
Estou cansado de fazer regime. Faz muito tempo que não como uma boa refeição sem aquela sensação de culpa. Sem ficar pensando no peso, sem me preocupar com a saúde, com a pressão, o colesterol, os triglicerídios e, claro, com a balança. Naquela maldita e móvel escala da balança que, a cada semana, resiste bravamente os meus apelos e o meu esforço para baixar, diminuir, cair, sair, sumir da minha vida. Ela não se comove com o meu sofrimento. Ela adora aqueles números altos, no meu caso já chegaram (no passado) até três dígitos. Consegue imaginar?
Meu peso máximo foi, alguns anos atrás, 121 quilos. Insuportável. Tinha constantes dores nas costas e nas pernas, dormia mal, ao dar três passos já ficava ofegante e a pressão alta me presenteava diariamente com fortes dores de cabeça. Minha vida era um inferno. Então comecei, de novo, um regime. É só começar a, polidamente, recusar a primeira sobremesa que colocam na minha frente e parece que as pessoas decidem tirar você do caminho. Claro que não é por mal. Oferecer um doce para uma pessoa é oferecer carinho. Mas para um gordo em regime, cada vez que isto acontece, é um sofrimento. Quantas vezes já não ouvi: mas só um pedaço não vai fazer diferença. Pois saiba que faz diferença sim.
Se você é magro e não sabe, e se você é gordo e ainda não tinha se tocado, saiba de uma coisa: o açúcar está para a gente como o álcool está para o alcoólatra. É um vício. Conscientize-se e trate-se como um viciado, um alcoólatra, um dependente químico. Não tome a primeira dose. Não fume o primeiro baseado. Não cheire a primeira carreira. Não injete o primeiro hit de heroína. Não coma o primeiro bombom.
E isto não é influência do filme Trainspotting. Não é liberdade poética nem literária. É a realidade da vida de grande parte da população. Na Inglaterra o governo percebeu que gastava mais com problemas cardíacos, vasculares e de coluna por causa da obesidade de certa parcela da população do que cuidando de vítimas da violência ou da AIDS. Resultado: está tratando o problema da obesidade como uma epidemia. Como conseqüência, está economizando e melhorando a qualidade de vida e a longevidade das pessoas.
No meio tempo, como o inverno pede (implora…) comidas calóricas, o dia a dia tem sido difícil. É por isto que, face ao meu comportamento dos últimos dias, e depois da lata de leite condensado que cozinhei ontem à noite (oito minutos depois que a panela de pressão começa a fazer psssssss…) sou obrigado a, publicamente, reconhecer que tenho um problema.
Sou viciado naquele maldito pó branco… açúcar. E não só na forma pura, mas em qualquer variante industrializado: doce de leite, chocolate (branco ou preto), bombom (com ou sem recheio) cocada, sorvetes em geral (com ou sem cobertura… melhor com…), goiabada, doces em calda, frutas em calda… e a lista não termina mais.
A situação é delicada, especialmente porque é a minha saúde que está em jogo. Praticamente todos os óbitos na minha família, por gerações, estão relacionados a problemas cardíacos. Preciso me cuidar. Preciso muito me cuidar. Mas espere um pouco que já volto. Tocou a campainha e deve ser o entregador da pizza. E a pizza é grande, claro. Com bacon, claro. Com cerveja, claro. Com uma enorme sobremesa, claro. De mousse de chocolate… escuro.

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Musa ocupada

Sou uma besta. Quando sento para escrever, não importa o texto, a circunstância ou a necessidade, é sempre na última hora possível, no último minuto possível.
E o que acontece? O texto sai. E o que acontece quando não estou inspirado? O texto sai. E quando estou cansado, com dor de cabeça, com fome, sono, preocupado? Isto mesmo, o texto sai.
Será que a minha Musa tem uma conexão à cabo (fio de prata, hehehe) ou ADSL de alta velocidade, um ICQ cármico e um pager akhasico e, mesmo em cima da hora, arranja uma forma de entrar em contato? Claro que não.
Basta sentar na frente do computador, ligar o Palm ou pegar a caneta, e o texto flui. Conclusão: não adianta só ficar esperando um momento místico de elevação quando ocorreria aquele insight único sobre a alma humana. Não espero mais pela visita da Musa Inspiradora que vai me ajudar a produzir o perfeito e completo conceito sobre o amor, o sentido da vida ou o propósito da morte em um parágrafo maravilhoso.
Se a Zefa, como chamo minha Musa (o nome verdadeiro dela é Yorka Horgílica Noviranda – prima distante das parcas), resolver aparecer, ótimo, melhor para mim. Ela será bem-vinda. Café passado na hora, vela branca acesa, incenso, música do Bill Evans e/ou John Hiatt e tudo o mais que ela tiver direito.
Caso contrário, mãos ao teclado. Escritor não é quem publica, é quem escreve.
Claro que tudo isto não é culpa dela. É minha. A vida da Zefa é um misto de devaneio e sonho em que ela delira e enlouquece um pouco com cada um de seus “inspirados” para que sejam um pouco mais criativos. E, óbvio, não estou na sua lista de prioridades absolutas.
Andei dando uma olhada na relação, uma vez em que ela estava por aqui e foi fazer xixi. No topo da página já meio amarelada estavam (só) dois políticos que estavam sendo preparados (pois ainda não haviam nascido), vários autores, filósofos, alguns músicos, nenhum apresentador de programa de auditório, muitas mães e pais, alguns professores e cinco pesquisadores da cura de doenças complicadas (alzheimer, câncer, esclerose múltipla, aids e chulé). No final da lista, comigo, aspirantes a escritor.
Naquela noite, Zefa, sábia como o tempo, quando voltou do banheiro retocando a maquiagem (sempre muito pesada, já disse para ela) perguntou:
-Gostou da sua posição na lista?
Constrangido, abaixei os olhos e fiquei tentando desvendar os mistérios dos cadarços dos meus tênis, que nunca ficam atados.
Enquanto acendia um Marlboro, antes de sair, Zefa deixou escapar:
– Quanto mais você trabalhar, mais sobe na lista. Não me espere. Sou eu que espero.
E foi embora.

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Endoscopia

A Nancy e eu estamos fazendo dieta há muito tempo. Mas agora, finalmente, estamos nos aproximando do final da fase de perder peso para aquela em que deveremos manter o peso atingido. Tudo bem. Vamos conseguir.
O problema é que baixei de 121 para 95 kg (o que para minha altura e compleição é quase bom) e agora o corpo está mudando. O primeiro resultado desagradável foi uma “remexida” nos órgãos internos que originou uma dor muito forte no peito. Muito forte. Quando ela resolvia dar o ar da sua (des)graça, tirava o fôlego e irradiava até o pescoço e pelo braço esquerdo. Achei que o coração “véio de guerra” estava pifando. Mas ficou no achar.
A remexida desaguou em outra área do peito. Não chegou a gerar uma hérnia de hiato (condição em moda hoje em dia) mas fez com que o laudo da minha endoscopia, que tem a impronunciável indicação técnica de “videoesofagogastroduodenoscopia”, acusasse:
Transição epitelial esôfago-gástrica 1,5 cm acima do pinçamento diafragmático, sem caracterização de hérnia hiatal. Observamos erosão longitudinal pequena, única, em terço distal de esôfago. Estômago e duodeno sem alterações. Conclusão: esofagite erosiva distal leve – Grau I Savary
O exame em si não foi tão ruim como eu imaginava. Pelas histórias que sempre ouvi tinha a impressão que ao entrar na sala de exames seria imediatamente levantado do chão por dois daqueles guarda-costas de ternos pretos de risca de giz e óculos escuros. Na minha versão do exame, criada por depoimentos de amigos e familiares, a coisa seria um verdadeiro pesadelo protagonizado por mafiosos.
Eles me arrastariam para uma salinha escura, no porão no hospital, do lado das caldeiras. Húmido, abafado. Iriam acorrentar meus braços na parede e enfiar algo parecido com um cabo de vassoura pela minha garganta abaixo. Já estava me vendo, com 80 anos de idade, descrevendo o trauma para uma psiquatra entediada.
Tudo bobagem. Entrei em uma clara e arejada (ar condicionado) sala de exames com aquela parafernália toda do lado de uma mesinha que, para variar, era pequena para mim. Ouvi o invariável “cuidado para não cair para o lado de lá”. Tomei uma gororobinha cor de rosa que a enfermeira, em um tom excessivamente “atencioso-profissional” disse ser “um remedinho para o estômago”. Sabe Deus o que era aquilo, mas tinha um gostinho doce. Meio “amorangado”. Depois ela veio com uma spray azul, com gosto de remédio de dentista pré-cirurgia. Explicou que aquilo deveria anestesiar a garganta. Cinco esquichadas seguidas de um “pode engolir” e mais cinco esguichadas.
“Agora o senhor pode se deitar aqui na mesa de exames. Fique deitado de lado, virado para cá. E (putz, claro!!) cuidado para não cair para o lado de lá”.
Ajeitei (equilibrei) o corpo da melhor forma possível e fiquei ali, sentindo a boca e a garganta adormecer, antevendo que iria começar a babar por tudo. Ouvi então: “levante a manga do braço esquerdo que a gente vai aplicar um sedativo leve, ok”?
A seringa parecia ter uns 16 metros de comprimento e estava na metade da aplicação quando as coisas começaram a ficar diferentes. Os sons tinham um eco, como se eu estivesse no fundo de uma piscina. As luzes eram fortes. Os movimentos das pessoas eram entrecortados e pareciam distantes.
Lembro de ter ouvido: “Não vai dar. Não vai dar”. Ao que tudo indica me informaram errado o tempo que deveria ficar em jejum. Tiraram aquela bagaça de dentro de mim e enquanto me carregavam para uma salinha com uma monte de gente literalmente “chapada” a enfermeira disse: O senhor vai ter que fazer de novo. O tempo de jejum não foi suficiente.
Fiquei ali com os outros companheiros de infortúnio esperando passar um pouco o efeito do sedativo. Mais ou menos uma hora depois e enfermeira voltou e disse que precisava marcar outra hora. Eu ainda estava meio zureta, me segurando na Nancy e marcamos para as 13 horas. Voltamos para casa e eu simplesmente apaguei. Acordei 12:30 e voltamos para o hospital.
Gororobinha amorangada, spray azul, ficar equilibrando na mesa e veio de novo a seringa de 16 metros. Só posso dizer: W O W !!! Foi uma viagem. Não chegou a ser uma bad trip, mas não foi também um passeio no parque. Claro, estavam enfiando aquela p… daquele tubo pela minha garganta abaixo.
Mesmo meio grogue a gente sente. Mas o tal do “sedativo leve” não é tão leve assim. Lembro de flashes. Sentindo ânsias. Gente me segurando, decerto para “não cair para o lado de lá da mesa” e uma voz de homem dizendo “agora tá bom… tá acabando… tá acabando…. fique calmo… tá acabando”.
Lembro claramente que olhei para o monitor e vi o que eles estavam vendo, ou seja, eu por dentro. Das poucas coisas que me lembro foi pensar “cacete, melhor não ficar olhando esta m…”. E logo depois estava na sala com os outros egressos do mundo do “sedativo leve”.
Mais uma hora e estava saindo de lá, zuretaão. A Nancy me olhando meio de lado, preocupada atendendo para eu não rolar rampa abaixo. Voltamos de táxi, mas não lembro de nada do percurso até em casa. Não lembro do que comi nem o que fiz a maior parte daquela tarde.
Quando fomos ler o laudo, ficou tudo explicado no item intitulado “Recomendações aos pacientes que receberam sedação”. Diz lá: A medicação utilizada para a realização da sedação (benzodiazepinico Diazepan EV) pode causar amnésia após o procedimento endoscópico.
A Nancy estava me cuidando, mas acho que além de paracer que tinha tomado todas, não fiz nem disse muitas bobagens. Pelo menos não tenho nada grave e só preciso fazer um tratamento simples para curar a esofagite. Menos mal.

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Verdades

Encontrei em um site que me foi indicado:
No livro “Get Shorty”, de Elmore Leonard, um escritor aspirante pergunta para um produtor de cinema que tipo de texto escrito dá mais dinheiro para seu autor. A resposta: bilhetes de resgate.
Andre Maurois, escritor francês disse: Em literatura, como no amor, ficamos sempre impressionados pelas escolhas dos outros.
As seis supremas leis para quem quer escrever:
1 – Leia.
2 – Leia.
3 – Leia.
4 – Escreva.
5 – Escreva.
6 – Escreva.

Palavras do romancista Ernest Gaines: Se, independente do motivo, você pararia de escrever, então pare agora. No entanto se, por nada no mundo você deixaria de escrever, então continue, e você terá sucesso.

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