Ela morava em um edifício amarelo, decadente. Estava descalça, usava só uma saída de banho azul marinho e disse que se chamava Alice.
Não sobrou dinheiro para o presente do Augusto, meu amigo secreto daquele ano. Dei só uma desculpa, pois Alice ficou com tudo. Deixei, como ela pediu e segundo a tradição, em cima da mesinha de cabeceira. Alta, comparada ao colchão que ficava no chão.
Felipe e eu fomos levados lá pelo Olavo, descobridor e primeiro desbravador da Alice. Nosso guia naquela aventura ficou esperando lá em baixo. Ele já era um homem. Alice era a responsável.
Naquele instante ela cuidava do Felipe. Culpa do par ou ímpar. Ele ganhou. Foi antes. Subiu a estreita escadinha um menino. Entrou no apartamento um adolescente, deitou no colchão um rapaz e desceu as escadas um homem.
Felipe foi transformado em homem 20 minutos antes do que eu. Ele sorria, depois, atravessando a rua em direção à marquise do boteco onde Olavo e eu nos refugiáramos da garoa que caía. Felipe, seus pés mal tocando o chão, se bem me recordo, planou sobre o asfalto e a calçada em nossa direção.
Eu, amassando no bolso o dinheiro do presente do Augusto, percorri o caminho que tantos outros meninos já haviam feito. Quando estava terminando a travessia do rio negro que me separava dos velados segredos de Alice, olhei para cima. Ela estava na janela, observando, avaliando, julgando por uma abertura nas dobras da cortina azul. Seus olhos, mesmo à distância, comunicavam uma promessa e um presságio: “Se entrar aqui te envolverei com meus lençóis e te farei um homem. Desta jornada não existe volta. Na minha cama todos os meninos morrem. Da minha cama só os homens se salvam.”
Esfinge. Amante. Carrasca. Parteira. Mãe. Ela era rainha naquele quarto. Cadafalso e berço. O pagamento pela minha transformação não foi só o amassado e suado dinheiro deixado na mesinha de cabeceira. Ficou perdida em Alice, cativa, sendo gestada, digerida, amadurecida, minha alma de menino. A alma que seria de outro homem. Aquilo no que se tornaria o próximo menino. Aprendendo a paciência. Esperando o momento de ser revezada pela próxima alma, quando chegasse o próximo menino, vinte minutos, vinte dias ou vinte anos mais tarde, com o presente para outro Amigo Secreto pesando no bolso e outra mentira pesando na consciência. A promessa e o presságio de Alice, então, e só então, estariam cumpridos.
Se contei os degraus não me lembro. Pareceram muitos.
Eram poucos.
A última orientação do Homem Felipe:
– Termina a escada vira à direita.
Lá estava ela. A porta meio aberta. Meio rosto aparecendo. Meio corpo revelado. Meia promessa, meia ameaça. Meia consciência, meio enevoada. Ela descalça. E ali, paralisado, duas metades: eu e meu medo. Um menino completo.
– Edu?
Voz meio velada, meio rouca, meio baixa. Entrei em um vestíbulo pequeno. Meia luz. Três portas. Uma, meio aberta, dando para uma cozinha. Outra mulher, meio velha.
Entramos em um quarto. Reconheci a cortina azul. A que vi quando ainda era menino, tanto tempo atrás, lá em baixo no rio de asfalto.
O presente do Augusto sobre a mesinha. Um peso a menos.
Cortina fechada. Só então ela sorriu e tirou a saída de banho. Lembro de um corpo moreno e de uma minúscula calcinha branca. Fragmentos. Memórias borradas como árvores vistas da janela de um carro. O rapaz na viagem para ser homem.
Deitar naquele colchão já teria sido prova suficiente. Já me faria homem. Já me provaria homem. Mesmo sem Alice. Mas com Alice e pela Alice eu sabia que a transformação seria mais profunda. Seria mais que homem. Super Homem.
Acho que, da turma, fui o último. Além do meu guia e do meu companheiro naquela jornada, não sei mais por quem Alice poderia reclamar seus direitos de esfinge.
O fato é que ser homem, quando se é menino, é muito importante. Mentir é fácil. Mas sempre existem detalhes, pormenores, nuanças, que são dados a conhecer somente aos que já foram devorados. Assim, aqueles que se gabam, mas que não foram estigmatizados pela marca de uma Alice são, cedo ou tarde, desmascarados pelos iniciados. Estes, sempre se reconhecem.
Sabem onde procurar o sinal. Na pele. Nos olhos. Sabem reconhecer aqueles que lá estiveram, que ouviram, que sentiram. Entre si, sabem o que dizer o que ouvir o que partilhar. Sabem o que esconder. Aprenderam a calar.
Foi então minha vez de descer a escada.
O menino, devorado.
O homem, parido.
Era minha vez de planar pelo rio negro.
Ela despediu-se com um aceno e desapareceu para sempre entre as brumas da cortina azul.
Estava chovendo?
– Sabe aquela tal Alice? Morreu.
– Sabe a Alice? Aquela que você foi? Doente…
Preocupação. Dúvida.
Mas as brumas azuis iriam se abrir ainda uma vez, provando que aqueles não iniciados eram profanos, mentirosos e infiéis. Traidores da minha e das suas Alices.
Rua XV de Novembro, manhã de janeiro, muitos anos depois.
Dois homens na minha frente assobiam e dizem grosserias para uma mulher. Blusa preta, calça preta, sandália vermelha de salto alto. Mesmo que ela fosse qualquer outra mulher, não mereceria ouvir o que eles diziam. Mas, gosto de pensar que, do alto do seu pedestal, ela não ouviu nada. Aqueles homens, apesar de seus ternos de risca de giz, gravatas de seda e sapatos italianos, não estavam à altura dela.
Achei que reconheci. Seria a minha Alice?
Tive que segui-la. Quantos assovios, insinuações e convites foram feitos durante a curta travessia pela sua passarela, entre a Rua XV e, sim, o edifício decadente. Na fachada, outra cor descascando.
Como em uma distante tarde de garoa, fiquei debaixo da marquise do boteco. Lá estavam as cortinas azuis. Não sei se eram as mesmas que filtraram a luz que tentou iluminar nossos corpos naquele colchão. Mas, como uma saudação, talvez um convite, as brumas se afastaram e eu a vi novamente.
Não cruzei o rio de asfalto. Os tempos eram outros. Só o que importa, e só o que me lembro, é que ela morava em um edifício antigo, estava descalça, sua pele era morena e seu nome era Alice. E que ela era uma mulher perfeita.
–
Um contador de histórias de mão cheia e tempero próprio. Receita autêntica com o viciante gostinho de quero mais.
Saudades suas.
Mas olhe que fazia tempo que eu não lia algo parecido… Acho que já estou ficando velha e achando que todos aqueles textos legais que vc mandava pra gente já tem uns 20 anos… Que bom ler de volta!
Beijo, chefe!
Adorei a história. Delicada e sutil. Que saudade das aulas de jornalismo literário.
Afiado e belo, como sempre! Posso dizer que, assim como Alice fez esses meninos homens, Marchioro me fez jornalista (ficou estranho?). É culpado. Obrigada 😉
Inveja de quem teve jornalismo literário com você. Saudades. PS. eu quero seus livros >Inveja de quem teve jornalismo literário com você. Saudades. PS. eu quero seus livros ><
Professor quando tiver outro curso me convida que pelo jeito a mulherada estará lá em peso.
Brincadeiras à parte, parabéns. Adorei o conto, muito divertido e posso acrescentar realista. :tongue: