Matéria Publicada no jornal Gazeta do Povo, em Curitiba, em 23/02/04
Vivendo perigosamente
Autor virou peregrino, alistou-se no CVV, viajou de submarino e saltou de pára-quedas
Otávio Frias Filho: “investigações participativas.” (Arquivo)
Definitivamente, o jornalismo está na moda. E isso não diz respeito apenas aos apresentadores e repórteres de televisão tratados como celebridades, com direito a macacas de auditório e tudo mais. Desde meados da década de 80, com o estrondoso sucesso editorial de Olga, biografia escrita por Fernando Morais, a reportagem migrou do espaço dos jornais, firmou-se no território dos livros, ganhou fôlego e o gosto popular. Hoje, é uma categoria de prestígio no mais importante prêmio literário do país, o Jabuti, e tem lá sua galeria de autores infalíveis – jornalistas como Ruy Castro, Sérgio Cabral, Caco Barcellos, Eduardo Bueno e Fernando Molina, para começo de conversa. Seus trabalhos são garantia de paladar safisfeito: texto elegante, informação clara e ajustada e aquela vontade danada de não desgrudar da obra antes de vencer a última página.
O formato livro-reportagem, inclusive, vem se solidificando de tal forma que grandes editoras e editoras de repertório, a exemplo da Companhia das Letras e a Geração Editorial, criaram selos específicos – Jornalismo Literário e Profissão Repórter, respectivamente. Esse formato até então vingava apenas em casas especializadas em livros técnicos, voltadas para a clientela universitária, ou nas publicadoras que perceberam o poder desse filão e passaram a investir em biografias e relatos históricos assinados por profissionais diplomados na arte de escrever (e apurar) bem.
Com o lançamento recente de Queda Livre: Ensaios de Risco, de Otávio Frias Filho, diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo, o jornalismo em livro avança um pouco mais em sua cruzada rumo à preferência nacional. Antes de mais nada é preciso dizer que se trata de um produto extraordinário, desses que deve fazer bela carreira nos cursos de Comunicação, o que não é pouco em meio à febre de abertura de novas faculdades que se verifica o país.
Mas o diferencial do trabalho está, antes de tudo, em apostar num gênero como o ensaio é modalidade que ainda não conquistou aquele público leitor que parte em busca de um bom livro para ler, mas que sempre identifica a ensaística com conversa especializada, voltada para pesquisa acadêmica, enfim, um blablablá para iniciados no qual prudentemente não vale muito a pena se aventurar.
O ensaio, do ponto de vista da imprensa, no entanto, tem suas próprias regras. E regras de sedução. Ainda que no conceito se confunda com um ensaio literário ou científico, ou seja, há um recorte temático preciso, a variação para um tema, ao cair nas malhas da imprensa ganha outro perfil. O foco no leitor, o flerte com os fatos recentes, a vitalidade com que se fala do que já vai longe no tempo e a linguagem forçosamente avessa às complexidades, pura e simples, tendem a fazer desses escritos uma viagem aprofundada na qual ela, a opinião, ganha asas, mesclando-se com a informação, dando-lhe um caráter inédito. Qualquer banalidade, nesse formato, corre o risco de virar um épico digno de Hollywood.
No caso dos textos reunidos por Frias em seu Queda Livre, vai-se um pouco mais adiante. Os fatos tratados no livro, já distantes da alta ansiedade que ronda a notícia e das regras dracônicas para transmiti-la, são analisados em clima de águas tranqüilas, com direito ao testemunho pessoal do autor como tempero e a um humor delicado. Esse é um charme que não passa despercebido. O ensaísta que assina cada um dos capítulos está não só visível como, elegantemente, diz nas entrelinhas que a vida pode ser mesmo muito interessante. Como a dele.
Uma passada de olhos nas situações vividas por Otávio dá conta disso. Primeiro ele salta de pára-quedas é à revelia do pavor que sente das alturas. Depois, passa pelo ritual do Santo Daime, viaja no submarino Tapajó, estréia como ator numa montagem de José Celso Martinez contando com míseros três ensaios. Por fim, ainda que descrente, faz durante mais de um mês o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha; freqüenta um clube de troca de casais e outras cositas mês, até, por fim, alistar-se como voluntário num Centro de Valorização da Vida (CVV), oferecendo sua palavra para suicidas, neuróticos e afins.
Ao todo, são sete casos muito particulares, mas acessíveis, em sua maioria, a qualquer um. Daí serem tão atraentes: terminada a narrativa, impossível não se perguntar por que não damos, também, um pulinho até alguns desses lugares, “para ver como é que é”, rompendo a barreira do som que também existe na mais comum das situações.
Por imposição do ofício, evidentemente, a presença de Otávio Frias Filho em cada um dos episódios que protagoniza é bastante sutil. Em todos os momentos ele resguarda sua condição de observador (ou “investigador participativo”) e tenta não impedir, pela força de sua experiência, que o leitor tenha acesso a todas as informações próprias de cada episódio. A pesquisa levantada é primorosa e justifica a classificação ensaio, com a vantagem de em nenhum momento parecer enciclopédica, ilustração barata ou embromação.
Em “Queda Livre”, que dá nome ao livro, por exemplo, é possível acompanhar cada passo do treinamento em pára-quedismo, saber da história do monge inglês Oliver de Malmesbury, que no século 11 saltou de um penhasco com asas presas aos pés e aos pulsos. Um pioneiro espatifado. Passa-se também por figuras mais espertas, como os irmãos Moltgolfier à eles preferiram lançar ovelhas em um balão aéreo experimental, no século 18. E do salto do jornalista, é claro, improvável de entrar para a História do Pára-quedismo, mas uma história que o jornalismo não poderia desprezar.
“O Terceiro Sinal”, um dos ensaios mais cativantes do livro, trata, com certo ineditismo, dos bastidores de uma montagem teatral. De quebra, traz uma revisão do estágio de Frias como autor de teatro. A fragilidade do narrador diante da trupe de feras do grupo de Zé Celso Martinez, os rituais muito próprios (e às vezes selvagens) da categoria e a própria descrição da estréia (como repórter Caveirinha numa montagem de Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues) se encarregam do resto. Frias diz mais sobre o teatro (e Snalislavski) nesse trabalho do que se pode imaginar.
Mas são “No Caminho das Estrelas” e “O Abismo” os que, curiosamente, mais chamam atenção. O “curiosamente” fica por conta do baixo teor jornalístico contido em episódios como uma peregrinação a Santiago de Compostela, no primeiro caso, e um estágio no CVV. Não que careçam de interesse, muito pelo contrário, mas se acham colocados ora num plano místico ora psicológico, tendendo, por isso, a rejeitar a busca de atrito, tensão e conflito que marca a linguagem da imprensa. Um clube de troca de casais se presta muito mais a esse formato, como se sabe.
Aqui, no entanto, dias e dias de estrada na Espanha, com os pés mutilados e a alma já atormentada (com direito a uma passagem inexplicável para um cético); e o rigoroso expediente de conversas ao telefone com anônimos destemperados ganham o contorno de uma grande reportagem. Essa pauta, quem diria, nasce do estranhamento diante do impulso humano em se sacrificar, render-se ao mistério e ajudar os outros.
É trivial. Não daria uma matéria, diriam. Mas mostra muito do que o jornalismo também pode ser é uma equação explosiva de pesquisa, análise, testemunho, ousadia e olhar generoso sobre a vida como ela é. Para tanto, é preciso muito mais do que três ensaios antes do abrir das cortinas.
José Carlos Fernandes
Nota deste Blogueiro – Fernandes menciona “Snalislavski”. Acho que ele pensou uma coisa e seus dedos escreveram outra. Pela referência a teatro, acho que ele queria falar em “Stanislavski”. O famoso Constantin Stanislavski, que desenvolveu um sistema de trabalho que foi adotado pelos atores da sua companhia.
Para o pessoal da ética
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